07/11/2017

Irmã cantábrica

Havendo bons carvalhais na Cantábria, a verdade é que a árvore aí dominante nos bosques naturais mais bem conservados é a faia (Fagus sylvatica), que, a não ser em jardins ou em plantações florestais, não existe neste nosso rectângulo ocidental. Essa diferença em ponto grande anuncia outras diferenças em ponto pequeno: também os arbustos e herbáceas que revestem o sub-bosque são outros que não os que existem por cá. Com excepções importantes, como o Hypericum androsaemum, a Linaria triornithopora, a Daboecia cantabrica, o Polygonatum odoratum e a Aquilegia vulgaris. Essas espécies tão características dos nossos bosques nortenhos sentem-se igualmente em casa em habitats nemorais no extremo norte de Espanha — embora, em rigor, a versão da erva-pombinha (Aquilegia vulgaris) que se encontra na cordilheira cantábrica se distinga da nossa pelo maior tamanho das flores e pela sua diferente coloração.



Saxifraga hirsuta L.


Esta saxífraga, que encontrámos em bosques, taludes frescos, margens de ribeiros e de um modo geral em lugares húmidos permanentemente ensombrados, foi um desses casos em que ao reconhecimento se sucedeu a estranheza. O que reconhecemos, por serem exactamente iguais às da Saxifraga spathularis, que sabíamos frequentar lugares semelhantes, foram as hastes erectas, avermelhadas e peludas de onde brotavam inúmeras floritas brancas salpicadas de amarelo ou rosa. Mas as folhas de pecíolo longo e fino, limbo arredondado e hirsuto, cordiforme na base, não batiam certo com as folhas coriáceas, glabras e (quem diria?) espatuladas da S. spathularis. Essa variação foliar, de tão marcada, impunha que se tratasse de outra espécie. E assim era: a Saxifraga hirsuta teve a honra de ser baptizada por Lineu, que lhe pôde dar um nome inteiramente apropriado na sua simplicidade. Sorte de pioneiro, quando os nomes simples e óbvios ainda estavam todos por usar. Mas Brotero, que deu nome à Saxifraga spathularis, também não tem razões de queixa.

As folhas das duas espécies, S. spathularis e S. hirsuta, dispõem-se em rosetas basais compactas que vão surgindo espaçadamente ao longo dos rizomas, formando tapetes de extensão apreciável. Nos Pirenéus espanhóis ocorre uma terceira saxífraga ibérica muito semelhante a estas duas, a S. umbrosa, e já fora da Península Ibérica, desde a vertente francesa dos Pirenéus até aos Alpes, uma derradeira espécie, a S. cuneifolia, vem completar um quarteto de (quase) sósias.

Em quase toda a extensão da cordilheira cantábrica, a S. hirsuta é a única representante do quarteto, mas no extremo leste ela já se faz acompanhar pela S. umbrosa, e nas Astúrias, a caminho da Galiza, vai dando lugar à S. spathularis. Chegámos a ver as duas espécies nos taludes da mesma estrada, mas não, infelizmente, nos mesmos lugares, perdendo assim a oportunidade de observar possíveis híbridos. A hibridação é quase inevitável quando elas partilham o mesmo espaço: não parecem existir quaisquer barreiras genéticas entre as duas espécies, e os híbridos, ao contrário da norma, são férteis, capazes de se reproduzir por semente. Dito de outro modo, se (como muitas vezes se defende) fosse a interfertilidade a determinar o conceito de espécie, então a S. hirsuta e a S. spathularis seriam a mesma espécie, apesar das evidentes diferenças morfológicas entre elas.

Em teoria, esta promiscuidade pode fazer com que uma das espécies seja inteiramente assimilada pela outra, ou que as duas convirjam para uma forma intermédia. Não há grande receio de isso suceder na Península Ibérica, onde a área de contacto é pequena, mas na Irlanda, onde ambas também ocorrem, o perigo é real. Aí a S. spathularis é dominante e a S. hirsuta é rara, mas todos os núcleos conhecidos da segunda estão bem dentro da área de distribuição da primeira. Um artigo publicado em 2014 (ver aqui) concluiu que, na Irlanda, as populações híbridas já suplantam as de S. hirsuta; e que mesmo as populações tidas como desta espécie raramente são formadas por indivíduos "puros", tendo em média 20% do material genético herdado da S. spathularis.

Noutras paragens, a "extinção por hibridação" é uma ameaçada potenciada pelo aquecimento global, afectando em particular as espécies de alta montanha. O mecanismo é simples: espécies que, devido ao habitat inóspito, permanceram isoladas durante milénios, ganham a companhia de congéneres arrivistas que, com as temperaturas mais amenas, conseguem agora sobreviver em altitudes mais elevadas. Se houver compatibilidade reprodutiva, as segundas, mais versáteis, podem absorver as primeiras, assim se perdendo endemismos de distribuição muito restrita. Este tema foi explorado num artigo de 2015 com um título premonitório: The silent extinction: climate change and the potential hybridization-mediated extinction of endemic high-mountain plants.

2 comentários :

José Batista disse...

Interessantíssimo, o dinamismo da evolução.

Unknown disse...

Que belo texto! Parabéns pela linda e simplificada abordagem a um assunto tão complexo!

Paula Maia